terça-feira, 12 de julho de 2016

DESENROLAR DO PERGAMINHO



DESENROLAR DO PERGAMINHO
Por vezes acordo no meio da noite e me ponho a escrever. Às vezes é só uma frase que surge do nada, avulsa, sem sentido aparente. Outras vezes são ideias, pensamentos completos. Há noites em que chego a preencher folhas inteiras, o raciocínio flui velozmente, sem autodomínio. Hoje, já durmo com papel e caneta no travesseiro ao lado.
Não quero ser surpreendida por esta compulsão, que me arrebata nas madrugadas, me forçando a sonambular pela casa em busca de local para depositar o conteúdo do meu pensamento que, aos borbotões, emerge do meu inconsciente. Isso começou quando eu era, ainda, uma adolescente.
Lembro que a primeira vez que isso me aconteceu, eu devia ter uns quatorze anos, por aí. Interessante é que não se tratava de um texto. Era o desenho de um pergaminho, com as pontinhas enroladas e tudo. Daqueles que o mensageiro do rei usava, para levar mensagens de um canto ao outro do reino, lembra? Foi assim que tudo começou.
Não levei muito a sério. Na época achei o máximo descobrir como se desenhava um pergaminho. Houve um tempo que cheguei a pensar que não era eu quem escrevia, achava esquisito ter esses lampejos noturnos, mas acabei me acostumando. Escrevo mesmo no escuro, em linhas tortas, com letras garranchadas.
No princípio só falava sobre isso em casa com os mais próximos. Hoje, não temo mais que me considerem “diferente”. Na verdade, não sei bem o que entendem por diferente. Tão bonzinhos!...
É bem verdade que nunca ouvi alguém dizer que tem sintomas semelhantes aos meus, mas de uma coisa estou certa, não se trata de nenhuma patologia. Até me sinto muito bem quando isso acontece e só tomo conhecimento, de fato, do conteúdo do que escrevi, quando acordo pela manhã.
A maioria desses escritos acaba mesmo é na lata do lixo.
Não sou aquilo que se pode chamar de uma pessoa organizada, pelo contrário. Sonho em ter uma secretária que passe os dias ao meu lado, recolhendo minhas ideias, meus pensamentos, minhas frases, minhas palavras e que depois organize tudo e me entregue digitado e salvo em um pen drive.
Maria Regina Torres
21/05/2012

Humanização da Psiquiatria

                                             HUMANIZAÇÃO DA PSIQUIATRIA

No Brasil, os leitos psiquiátricos foram quase que totalmente extintos, mas ainda restam alguns poucos leitos hospitalares. E o Centro de Atendimento Psiquiátrico Dr. Aristides Alexandre Campos - CAPAAC - é um deles, com 38 leitos de curta permanência, localizado em Cachoeiro de Itapemirim, município que compõe a macro-região sul do Estado do Espírito Santo. 

O CAPAAC foi criado em 20 de dezembro de 1973, com o nome de "Pronto Socorro Psiquiátrico de Cachoeiro de Itapemirim". Em 1980 o Pronto Socorro Psiquiátrico passou a chamar-se Centro de Atendimento Psiquiátrico "Dr. Aristides Alexandre Campos", em homenagem ao notável interventor federal que governou o Estado do Espírito Santo em 1946.

O CAPAAC presta assistência a doentes mentais graves, agudos e ao longo dos anos, adequou-se às novas diretrizes e às políticas de saúde mental em vigor, buscando a humanização da assistência a esses doentes.

Houve um tempo em que os portadores de transtornos mentais eram vistos e tratados como animais perigosos. Felizmente isto ficou no passado e o CAPAAC tem sido pioneiro nessas reformas.

Avançamos muito na questão da humanização da assistência aos portadores de transtornos mentais, porém esse é um trabalho sem fim. Precisamos nos reciclar permanentemente e nos policiar para que não nos esqueçamos dos avanços e não nos sintamos tentados a retroceder.

Ninguém disse que esta seria uma tarefa fácil, muito pelo contrário. Sabemos que é um grande desafio e é uma tarefa de todos.

Houve um tempo em que os pacientes eram enjaulados e quando saíam das jaulas, por algum descuido dos seguranças, os servidores saíam correndo e gritavam e se escondiam. Naquele tempo os pacientes eram medicados através das grades e recebiam suas rações através das grades. Os pacientes gritavam como animais, defecavam como animais, urinavam como animais e tomavam banho como animais com jatos d’água dentro das celas.

Houve um tempo em que tínhamos seguranças e não técnicos dentro dos hospitais psiquiátricos. Naturalmente, que naquele tempo, era mais “seguro” para todos e, também, era mais cômodo para todos. As mudanças tornaram o trabalho mais árduo. Dos profissionais de saúde mental passou-se a exigir mais e a esperar mais.

- E o que esperamos dos profissionais de saúde mental?

Principalmente que atuem com técnicas de abordagem mais humanas. Que cada um de nós sejamos capazes de doar uma porção de nós mesmos.

Na abordagem dentro da clínica geral é muito importante saber lidar com a doença. 
Na psiquiatria é vital saber lidar com o doente.

Cada doença tem o seu próprio perfil e o profissional de saúde deve adequar-se ao perfil do paciente e não o contrário. Alguns nascem talhados para a atividade que desempenham. Outros devem moldar-se a ela.

A condição básica para ser um trabalhador da área de saúde mental é conhecer e aplicar técnicas e fundamentos da psicologia.

Todos aqueles que lidam direta ou indiretamente com o portador de transtorno mental precisam saber disso e buscar conhecimento.

A Psiquiatria envolve muito além de um corpo.  Envolve conhecimentos da medicina, da psicologia, da filosofia, da antropologia, da linguagem corporal, entre outros. Exige empatia.

É preciso ser empático para atuar nesta área. É preciso sentir como o paciente, é preciso se colocar no lugar dele, é preciso sentir a dor do outro doendo em si mesmo, é preciso envolver-se, é preciso ser humano.

O respeito ao doente e à sua doença é o primeiro passo para o tratamento bem sucedido.

Cada trabalhador da área de saúde mental, independente de sua função, é um agente terapêutico e sua ação influenciará no resultado, positiva ou negativamente.

A internação psiquiátrica é o último recurso para aquele que padece de doença mental. É a esperança após todas as alternativas terem falhado.

Compete a cada um de nós, nos prepararmos psicologicamente para lidar com as características próprias da doença, compreendendo que, antes mesmo de lidarmos com a doença, estamos lidando com o doente.

Com isto quero dizer que devemos respeitar a individualidade de cada um, com as características próprias da sua personalidade. A doença mental não o torna inferior ou menos digno de respeito.

Por esta razão o acolhimento bem sucedido é o primeiro passo para o sucesso do tratamento.

Não existe possibilidade de compreendermos as causas da agressividade de um paciente, sem antes compreendermos essas prerrogativas.

A agressividade do ser humano comum está, na maioria das vezes, relacionada à defesa e ao medo. Não me refiro aqui às situações de conflitos sociais, mas às relações interpessoais.

Com o paciente psiquiátrico não é diferente. O paciente psicótico age com agressividade, na maioria das vezes, para defender-se das alucinações e delírios, ou quando sente-se atacado por alguém ou desrespeitado.

Precisamos compreender que a internação psiquiátrica, quase sempre, ocorre de forma involuntária, o que agrava ainda mais a situação. O paciente não tem consciência da doença e qualquer imposição feita a ele será compreendida como uma violência e suas reações serão, naturalmente, de raiva, revolta, agressividade. A perda do direito de ir e vir não será compreendida como um ato de proteção e cuidado.

O profissional de saúde mental precisa saber disso e ter empatia com esse indivíduo que está sentindo-se prisioneiro, impedido de exercer seu livre arbítrio.

No momento em que o paciente sente-se compreendido em sua raiva, apoiado e confiante naquele que o acolheu, esta conduta técnica, por si só, aliviará o seu sofrimento e o paciente aceitará melhor a sua condição de interno, passando a confiar no profissional, criando-se, a partir de então, o vínculo necessário para o início do tratamento.

Ouvi-lo, compreendê-lo, aceitá-lo, apoiá-lo, acolhê-lo. Este é o nosso principal papel.

- Estamos exercendo a nossa função adequadamente?

Mesmo aquele paciente que, aparentemente, está fora de controle, delirante, sem crítica adequada irá se beneficiar e corresponder positivamente, quando bem acolhido.

No atual contexto, não há mais lugar para pensarmos em celas, jaulas, grades, seguranças, policiais ou outras medidas de repressão, dentro dos hospitais psiquiátricos, pois nossos pacientes são seres humanos que merecem respeito e cuidado de todos, mas, sobretudo, de nós, profissionais da área da saúde mental.

O que cada um de nós deve e precisa fazer é nos qualificarmos, continuamente, para estarmos aptos a atuar junto a esta clientela tão discriminada, tão estigmatizada, tão necessitada de afeto, de respeito e de recursos no sistema de saúde.

Quanto à questão da segurança devemos aliar os fundamentos da psicologia às técnicas apreendidas nos cursos de formação profissional e, também, às de defesa pessoal, para que possamos proteger nossos pacientes de si mesmos e de terceiros.

 Cachoeiro de Itapemirim, 04 de julho de 2016.

Maria Regina Rodrigues Torres



quinta-feira, 24 de maio de 2012

O CAOS NA SAÚDE MENTAL

O CAOS NA SAÚDE MENTAL

Na contramão da história está a política de saúde mental do Ministério da Saúde, que nas duas últimas décadas trabalhou, incessantemente, pela extinção dos leitos psiquiátricos.
Com base em conceitos puramente filosóficos e ideológicos, assessorado por indivíduos distanciados da realidade o Ministério da Saúde, nos últimos anos, desenvolveu uma política de saúde mental desastrosa e, hoje, colhe os resultados. A precária e insuficiente rede de serviços psiquiátricos que existia tornou-se ainda mais precária. Os portadores de transtornos mentais que dependem da assistência pública de saúde amargam graves prejuízos.
Mas os reflexos deste descaso com a saúde mental da população não afeta somente a esses doentes, que não tem voz nem voto, afeta a sociedade como um todo.
A quem caberia o tratamento dos milhares e milhares de dependentes químicos, doentes mentais, que assolam este país?
Hoje, o que podemos constatar, é que famílias desesperadas precisam recorrer ao Judiciário para garantir algum recurso para seus doentes. Dezenas de familiares abarrotam diariamente os Fóruns em busca de socorro para seus doentes, isto porque já falharam todos os outros meios, não restando alternativa ao cidadão, senão recorrer ao Judiciário.
Centenas de ocorrências são registradas por vítimas da violência causada por doentes mentais, dependentes químicos. A primeira violência é a doméstica, principalmente contra mulheres, mães, avós, esposas, irmãs, filhas e outros. As próprias vítimas não desejam que seus agressores sejam punidos. O que desejam é que sejam tratados, debatem-se contra a ordem judicial punitiva, choram e imploram por socorro. Querem, sim, tratamento digno para seus doentes.
Mas não existem hospitais psiquiátricos suficientes. Muitos dos que existiram foram extintos e os leitos desativados não foram substituídos, porque a ordem é a extinção dos leitos psiquiátricos. E os que sobreviveram à pressão e continuam prestando serviços ao SUS vão, pouco a pouco, sendo asfixiados, com repasse de valores aviltantes e, muitas vezes, são vistos como vilões pelos gestores públicos.
Diariamente presenciamos filas de familiares atormentados, nas portas dos hospitais que restaram, em busca de vagas para seus doentes. Mas quem vê essas filas? Testemunham aqueles que estão na linha de frente, lidando com a desgraça, não quem está atrás da mesa, idealizando políticas mirabolantes.
Como tratar um doente mental apenas após seu consentimento, se este não tem consciência de sua doença? Ou, se tem, não tem forças para combatê-la. Como então, esperar que essas criaturas, por si só, busquem tratamento para seu desequilíbrio mental? Isto é ridículo e cruel. Seria o mesmo que ao nos depararmos com um acidente em via pública, estando a vítima inconsciente, tivéssemos que aguardar pelo consentimento do cidadão vitimado, para que fosse socorrido. Pois é assim que acontece com o dependente químico. O sujeito é “atropelado” pela droga e não consegue pedir ajuda e na sua inconsciência, chega mesmo a rebelar-se contra o socorro, sendo assim, não será socorrido.
Muitas mães chegam a procurar a polícia a implorar para que prendam seus filhos ou acabam por acorrentá-los dentro de suas próprias casas, para que não se entreguem ao vício ou sejam assassinados. Preferem vê-los atrás das grades do que nas ruas, sem assistência à saúde. 
Muitas vezes, é dentro das penitenciárias, após praticarem toda sorte de delitos e já condenados, que recebem o primeiro atendimento psiquiátrico. Chegaram ao ponto de serem privados da liberdade e sofrem com a realidade própria da vida carcerária, encontrando-se incapazes para o convívio social. As penitenciárias estão lotadas de dependentes químicos, que na ânsia de alimentar o vício assaltaram, roubaram, traficaram, mataram etc, etc, etc...
E como chegaram até lá? Chegaram porque não foram parados a tempo de serem tratados e não cometerem crimes. E não foram tratados porque não existem serviços de saúde mental suficientes para tratá-los. Precisaram assaltar, traficar, matar para que pudessem ser dignos de atenção e recebessem tratamento de saúde. Que ironia!
E essa massa de dependentes do crack cresce a cada dia e, enquanto isso, os investimentos públicos em saúde mental são insuficientes e equivocados. Extinguem-se leitos hospitalares, desestruturam-se ambulatórios, inauguram-se meia dúzia de leitos para tratamento de dependentes químicos, criam-se CAPS, verdadeiros elefantes brancos que viram cabides de emprego. 
É um contra-senso. O Código de Processo Penal prevê que o Juiz ordenará que esses indivíduos sejam internados em estabelecimento de saúde adequado, mas como cumprir a lei se não existem tais estabelecimentos?
O que é pior, é que muitos dos serviços de saúde mental existentes estão despreparados para receber esta clientela, tanto em estrutura física quanto em profissionais qualificados. É comum ouvir-se, tanto dos profissionais quanto dos gestores destas unidades de saúde, que lá não é lugar para esses doentes. Onde seria então este lugar, senão nos hospitais psiquiátricos? Tenha o nome que tiver, seja hospital psiquiátrico, clínica de repouso, centro de recuperação, centro de assistência, centro de atendimento ou qualquer outro nome, isso é o que menos importa. O que importa é que esse lugar tem que contar com uma equipe multiprofissional preparada para recebê-los e com um programa de assistência específico para esses doentes. Se os próprios profissionais que deveriam tratá-los os rejeitam, o que se pode esperar? Comumente esses doentes são vistos como se fossem bandidos, marginais, mesmo antes de praticarem qualquer delito.
O fato é que o perfil da clientela psiquiátrica mudou nos últimos anos e se há anos atrás a população psiquiátrica que necessitava de internação era composta, sobretudo, por esquizofrênicos e outros psicóticos, hoje esta não é mais a nossa realidade, pois para aqueles doentes os antipsicóticos de última geração já conseguem amenizar-lhes o sofrimento, reduzindo em muito o número de internações. Houve um tempo em que não havia outro recurso senão interná-los, pois não existiam os remédios que hoje existem. Agora é a vez da dependência química, em que as internações são necessárias, mesmo que involuntariamente. 
Já passou da hora do Ministério da Saúde acordar para esta realidade e estabelecer um programa específico de tratamento para esses doentes que necessitam de uma abordagem diferenciada, em regime de internação.
Proliferam os serviços de igrejas, casas de apoio, centros de recuperação, etc, sem nenhuma estrutura, sem qualquer tratamento além da abordagem espiritual, muitos até bem intencionados e que, apesar de tudo, ainda são a tábua de salvação para muita gente. Outros tantos serviços particulares são criados por ex-dependentes, que se dizem cuidadores ou terapeutas, que acolhem famílias desesperadas em busca do socorro, negado pelo sistema de saúde pública, para seus doentes. Interessante observar que estas instituições não são alvos de qualquer fiscalização. Proliferam devido à omissão dos órgãos públicos que deveriam assumir o papel de acolher, cuidar e tratar desses doentes. Lá os dependentes químicos permanecem por necessários meses para superação do período de abstinência. Por outro lado, aos serviços de saúde, credenciados para tratar de doentes mentais, não são permitidas internações que ultrapassem alguns dias.  
É evidente que não dá mais para tapar o sol com a peneira. É preciso que os governos federal, estaduais e municipais levem a sério problema de tamanha gravidade e assumam a responsabilidade por esses doentes que, progressivamente, vem se multiplicando, em números assustadores.
Resta-nos o sentimento de vergonha e a indignação diante desta realidade.

Maria Regina Rodrigues Torres
21/09/2010